Que tipos de atitudes e situações “comuns” geram desconforto aos autistas? Por que isso os incomoda? Como identificar essas particularidades no cotidiano? É possível conviver em harmonia e respeitar as diferenças, sem achar que isso é ‘frescura’?
Esses e muitos outros temas estão descritos no livro O labirinto oculto – Autismo o desafio de ser diferente (LetraMais Editora, 192 págs., R$ 59,90), escrito pela autista Rafaela Jacob.
A obra acaba de chegar ao mercado editorial e terá evento de lançamento no dia 21 de junho (sexta), às 19h, na Livrarias Curitiba do ParkShopping Barigui [Rua Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 600, Curitiba-PR], durante uma sessão de autógrafos. A entrada é franca, o livro está à venda em todas as livrarias e marketplaces do Brasil.
“O grande problema é que a maioria dessas situações tão inconvenientes para os autistas são invisíveis para o restante da população”, explica Rafaela.
“Antes de julgar um autista pelo seu comportamento atípico, é importante lembrar que o modo que ele enxerga o mundo é diferente do seu, o que não o torna errado ou exagerado, apenas diferente”, complementa a autora.
Estudante de medicina mais jovem da história da UEPG
Com apenas 16 anos, a jovem escritora também é a estudante mais nova da história da Universidade Estadual de Ponta Grossa a entrar na graduação de medicina. Para isso, ela superou a concorrência de 90,8 candidatos por vaga e já está no primeiro ano do curso que sempre desejou.
“É incrível olhar as células em processo de mitose, ver a vida progredindo. Quero estudar meus hiperfocos (neurologia e oncologia) e ajudar outras pessoas”, diz.
Diagnóstico e alívio
Diagnosticada com TEA aos 13 anos de idade – por meio de um teste que também a identificou com altas habilidades e superdotação – Rafaela conta que a confirmação serviu como um tipo de alívio para suas angústias.
“Levava broncas por não me encaixar nos padrões, por não fazer as coisas que as crianças da minha idade faziam. Me senti aliviada por finalmente ter uma confirmação de que não estava tudo na minha cabeça, que eu não era uma aberração”, explica Rafaela.
Preconceitos e bullying
Na obra a autora menciona os incontáveis momentos em que indivíduos com autismo são ridicularizados por expressar dor; um sentimento experimentado do modo ‘não convencional’ pelos padrões impostos socialmente.
O livro também menciona que o bullying é outra experiência universal entre os autistas. “É triste fazer essa afirmação, mas isso não a torna menos verdadeira. A cada quatro autistas, três sofrem bullying em algum ponto até atingir a maioridade”, diz Rafaela.
Dicas
Confira algumas dicas de Rafaela Jacob para tratar os autistas como qualquer outra pessoa, respeitando assim seus desejos, gostos e desgostos e particularidades:
1) Em sua opinião, quais são as principais situações/ocasiões que mais geram desconforto aos autistas e as pessoas não percebem/não sabem disso?
São várias. Como o autismo é um espectro, as situações podem variar muito de pessoa para pessoa, inclusive em sua intensidade. Contudo, existem certos padrões que costumam ser irritantes e desconfortáveis para autistas e estão geralmente relacionados ou com estímulos sensoriais ou com relações interpessoais.
O grande problema é que a maioria dessas situações tão inconvenientes para os autistas são invisíveis para o restante da população. Por exemplo, festas e baladas são extremamente comuns, mas para os autistas toda a conversação, música alta e esfregação de uma pessoa na outra se torna o ‘inferno na Terra’.
Uma regra de convivência brasileira é se cumprimentar por meio de beijos e abraços e para as pessoas no espectro, tanto contato físico e intimidade com estranhos é desgastante, assim como a dificuldade em manter contato visual e se concentrar em uma só coisa ao mesmo tempo.
Padrões sociais, piadas e linguagem facial/corporal nem sempre são entendidas plenamente por quem está no espectro. Parece que todos conseguem entender as coisas, menos você. E como se você fosse algum ser de outro planeta!
Surpresas também nem sempre são bem-vindas. Nós, autistas, tendemos a gostar de ter um planejamento desenhado para toda e qualquer situação e surpresas não só os atrapalham, mas também são hiperestimulantes; tanto sensorialmente, quanto emocionalmente.
Nesse mesmo tópico, entram as mudanças de última hora e atrasos (comportamentos típicos do “jeitinho brasileiro”). Muitas vezes, autistas quando sobrecarregados, podem passar como ingratos ou birrentos para terceiros, mas isso não poderia ser mais longe da verdade, as emoções são tão grandes que não cabem dentro de si mesmo.
Comer fora de casa também pode ser estressante, tanto por não ter sua “comida de conforto” (alimento seguro com textura e sabor aprovados) e por toda a pressão de agir segundo as normas sociais mesmo com as conversas das outras mesas, com o ambiente novo, com as luzes do estabelecimento e todos os outros estímulos. Por isso, diálogo e compreensão são as bases para combater essa desinformação da população.
2) E por quais motivos essas situações são desconfortáveis aos autistas?
As situações desconfortáveis para os autistas são divididas em três grandes motivos: estímulos sensoriais, situações sociais e eventos inesperados/quebra de rotina.
Tudo isso causa uma sobrecarga emocional quase impossível de lutar contra. É como se tudo estivesse no mesmo lugar, ao mesmo tempo. É difícil de explicar para quem não sente isso.
É como se você estivesse olhando para uma tela com vários filmes e músicas diferentes, mas sem conseguir focar em nenhum, só captando o sentimento envolvido.
3) Quais foram suas reações ao ser diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA)? O diagnóstico te ajudou a compreender os próprios sentimentos?
Quando fui diagnosticada, não fiquei tão surpresa; uma parte de mim sempre soube que tinha alguma coisa diferente comigo. Muitas pessoas e seus familiares passam por um período de luto pós-diagnóstico. Meus pais mesmo passaram por esse processo (por um tempo eu nem mesmo podia mencionar a palavra “autismo” em casa).
Comigo foi diferente: eu já sentia esse luto de uma forma fracionada ao longo de toda a minha vida, seja quando eu via as outras crianças da minha idade fazendo coisas que eu não conseguia, quando eu ficava sozinha na escola e no parquinho, quando eu levava broncas por não me encaixar e fazer as coisas de um jeito diferente. Mesmo assim, quando recebi o diagnóstico, me senti aliviada por finalmente ter uma confirmação de que não estava tudo na minha cabeça, que eu não era uma aberração.
Eu comecei a achar uma explicação para todas as coisas que eu achava que me faziam ser um erro da natureza. Foi aí que eu percebi que existem outras pessoas que passam pelas mesmas coisas que eu e que sentem esses mesmos desesperos e inseguranças. Foi isso que me motivou a escrever meu primeiro livro.
4) Que dicas você poderia dar às pessoas que não compreendem o jeito/particularidades dos autistas para que ambos vivam em harmonia?
Parece clichê, mas a base para uma relação harmônica entre os autistas e o resto da sociedade (a parcela neurotípica) é a compreensão.
Muitos não compreendem o jeito e as particularidades dos autistas porque focam apenas nos estereótipos e nos preconceitos e não enxergam as pessoas no espectro como humanos, assim como quaisquer outros.
Quando as pessoas descobrem que sou autista ou me tratam como uma criancinha – que não entende nada ou com desprezo por estar querendo atenção, por ser “estranha” – me tratam como se eu fosse uma espécie de extraterrestre e esse é o problema.
A minha dica principal é tratar os autistas como qualquer outra pessoa, respeitando assim seus desejos, gostos e desgostos e particularidades. Eu resumiria com a máxima: “trate os outros como gostaria de ser tratado”.
5) O que te motivou a estudar medicina?
Desde pequena sempre soube que seria médica. Ajudar os outros sempre foi um dos meus maiores propósitos.
Uma coisa que me incentivou nessa área tão desafiadora foi a chance de conseguir mudar o mundo de alguém. Eu sei que querer mudar o mundo é uma ambição e tanto, mas acredito que podemos todo dia mudar o mundo de alguém para melhor e é assim que transformamos o mundo.
Outro fator foi evitar que outras pessoas sofram como eu sofri. Crescendo no espectro, passei por momentos de dificuldade, mas escolhi usar isso como força e motivação para fazer algo bom com tudo isso e a medicina é minha grande chance.
6) Como foi concorrer e passar num vestibular tão disputado, como o da UEPG?
Para o ano que eu participei do processo seletivo (fim de 2023 para ingresso no primeiro semestre de 2024), a relação foi de 90,8 candidatos por vaga e foi o vestibular mais concorrido/com maiores notas de corte da instituição.
Fiquei extremamente feliz e grata por todas as oportunidades que me levaram a esse momento. Eu nem conseguia acreditar que tinha sido a pessoa mais nova da história da UEPG a entrar no curso de medicina, com apenas 16 anos.
7) O que mais te agrada no curso de medicina?
É poder estudar os meus hiperfocos (neurologia e oncologia). Ir ao hospital também é incrível!
A primeira vez que fiz a anamnese de um paciente foi mágica. Ver o corpo humano por dentro também é fantástico, entender como a máquina perfeita que é nosso corpo funciona também.
Olhar células em processo de mitose é uma das minhas memórias chaves do curso (ver a vida progredindo e iniciando é lindo). Amo também a parte laboratorial. A faculdade só tem confirmado a minha vocação; é um sonho se tornando realidade.
8) Em que área pretende atuar depois de formada?
Com certeza neurocirurgia. A única dúvida que tenho é se quero seguir a subespecialidade oncológica ou de trauma.
Além disso, gostaria de realizar pesquisas clínicas e laboratoriais nas áreas de oncologia e doenças neurodegenerativas. O cérebro humano e o câncer sempre foram dois hiperfocos meus e é extremamente gratificante poder trabalhar em uma área que eu sou apaixonada e incorporar minhas “habilidades” típicas do espectro autista em minha carreira.